40 anos após 1ª edição o clássico Uma literatura nos trópicos ganha reedição ampliada
11/03/2019
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O clássico livro de Silviano Santiago Uma Literatura nos Trópicos será relançado no próximo dia 18, na Livraria Travessa - Ipanema, do Rio de Janeiro. Após 40 anos da publicação original, a obra ainda se mostra pertinente no cenário literário atual. Com isso, a Cepe Editora reedita o clássico, que ganha nesta edição cinco textos inéditos.
Confira a entrevista publicada no dia 9 de março pelo Jornal O Estado de S.Paulo (edição online), reproduzida aqui:
Publicado em 1979, Uma Literatura nos Trópicos reunia uma série de ensaios sobre a cultura latino-americana escritos pelo professor e escritor mineiro Silviano Santiago, depois de uma longa ausência do Brasil, período no qual passou por universidades na França e nos Estados Unidos.
Ao se deparar com o país silenciado pela ditadura militar, Silviano procurou explicar a busca por nossa identidade com o conceito de entre-lugar. Nesta entrevista, o autor do premiado romance Machado (2017), hoje com 82 anos, volta à obra que agora completa 40 anos e marcou os estudos universitários brasileiros. À reedição, agora pela Cepe Editora, foram acrescentados textos sobre Iracema, de José de Alencar, e A Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, entre outros.
Quatro décadas depois da publicação de Uma Literatura nos Trópicos, cuja ideia central é o conceito de entre-lugar na cultura latino-americana, continuamos a nos deparar com questões muito semelhantes com as examinadas pelo senhor. Para a reedição da obra, o senhor teve de voltar a ela. Como foi esse retorno?
O entre-lugar, antes de ser um conceito, é uma ferramenta de trabalho ativada pela força desconstrutora que a noção de diferença trouxe para o pensamento filosófico contemporâneo. A diferença é que revela nossa singularidade de intelectual e de artista do Novo Mundo. Nossa singularidade não está na pureza greco-latina ou europeia, forçada goela abaixo pela escola autocrática. O entre-lugar me foi instruído pela leitura do capítulo 31 dos Ensaios, de Montaigne, intitulado Sobre os Canibais. Os canibais não se comportam como se espera e se diz, é a lição revolucionária de Montaigne. O filósofo abre para nós, latino-americanos, um espaço entre. Esse espaço é físico, humano e intelectual e terá de ser preenchido por nós. Dentro do entre, isto é, na barra que separa dentro/fora do Ocidente, é que pensamos e atuamos. Para que tal tarefa seja possível, temos de trabalhar de modo adequado e inequívoco a diferença. O entre-lugar é o lugar do outro, que nos coloniza, e é, deve ser, o nosso lugar, onde desconstruímos o legado europeu para afirmar nossa singularidade. Nada idealizado, tudo muito pragmático.
E a ferramenta de leitura ainda é atual?
Sim. Pelo uso dela, podemos indiciar, por exemplo, o equívoco de um chanceler que exclui textos latino-americanos dos futuros diplomatas brasileiros. Se em Montaigne está a necessidade de se pensar a diferença, lá está também o dilema que, por sua vez, gera o multiculturalismo. Sem Montaigne, o estudioso americano voltaria a ser apenas uma máquina repetidora, meramente reprodutora e nossa criação seria eternamente uma cópia. Montaigne nos leva a colocar uma pergunta: onde você vive, lê, pensa e escreve? Que contribuição original você, pensador e artista latino-americano, dá a conhecer nesse entre-lugar de ser, de ler, de reflexão e de escrita? No ensaio Eça, autor de Madame Bovary, o potencial de leitura de O Primo Basílio é formidável e pode nos levar a “reler” Flaubert com olhos diferentes. Para ler o modernista Carlos Drummond, retomo um tópos renascentista camoniano, “a máquina do mundo”. Na verdade, ao ler Claro Enigma, releio Os Lusíadas. A literatura brasileira só é verdadeiramente comparada, ou seja, universal, no momento em que o crítico questiona “a fonte” europeia e a “imitação” dos latino-americanos com a ferramenta chamada entre-lugar.
E Machado de Assis como entra nessa dança?
Nesse contexto, Dom Casmurro marca o fim da linha flaubertiana. Pela narrativa de Machado ser de responsabilidade do marido, e não de uma terceira pessoa anônima e dita objetiva, ele desloca a questão da traição da esposa para focar o possessivo ciúme masculino. Este é o construtor da infidelidade feminina. É o ciúme que inventa um amante para a esposa. A infidelidade é, paradoxalmente, obra do marido. Machado escancara algo que os dois romancistas europeus não conseguem escancarar. O nó no relacionamento amoroso está na “liberação”, pela mulher, do jugo machista. A atitude feminina se torna desejável porque Machado é o único dos três romancistas em questão que desconstrói a autoridade do discurso masculino no romance do século 19. Ele anuncia os movimentos de autonomia identitária, entre eles o da mulher, que, no século passado e neste, pipocam no mundo. Machistas empedernidos como Otto Lara Resende e Dalton Trevisan bem que quiseram reafirmar a verdade absoluta do discurso masculino. Eles representam o último suspiro nos trópicos do imenso Flaubert.
Como se aplica a teoria na sua leitura de Machado de Assis?
Em Machado de Assis, a desconstrução do discurso autoritário, masculino e burguês, enfrenta os dois principais pilares da formação educacional e moral de Bentinho e, por extensão, do letrado brasileiro no século 19. Bentinho é ex-seminarista e advogado. O leitor pode desconstruir a visão de mundo dele, sua retórica e sua atuação, pelo conhecimento do modo como se introduz no pensamento ocidental não a busca da “verdade”, mas o primado da “verossimilhança”. Os biógrafos de Machado insistem no fato de que ele era leitor e admirador de Pascal e de Platão. É Pascal quem relata a famosa querela entre jesuítas e jansenistas. Estes castigam sem clemência a casuística dos primeiros através do que se chama o “probabilismo”, ou seja, “a doutrina das opiniões prováveis”. A palavra provável, como nos ensinam os teólogos, guarda o sentido etimológico, que é o equivalente perfeito do “verossímil” em retórica. A Pascal some-se Fedra, de Platão, diálogo de leitura obrigatória dos juristas. Ali, se chama a atenção para a diferença entre “persuadir” e “dizer a verdade”. A persuasão é arma retórica e escamoteia – pela verossimilhança – a busca da verdade. O advogado de defesa e o de acusação – ambos se valem da mesma retórica da verossimilhança para persuadir o jurado/juiz que o réu é inocente ou culpado. Quem melhor trabalha a retórica persuade. Vence. Teria dito a verdade? Não. Não é, pois, por casualidade que o narrador de Dom Casmurro seja seu próprio advogado de defesa e de acusação de Capitu. A culpa não se casa com o remorso. Casa-se com a mentira.
O tópico da verossimilhança tem algo a ver com o discurso político nos dias de hoje?
Claro. Ler Machado de Assis é o melhor antídoto contra as fake news, de que se tornou principal ator e divulgador o presidente Donald Trump. Não estou dizendo novidade, está no New York Times. Está também no primeiro romance publicado por Machado de Assis, Ressurreição (1872). O apaixonado por Lívia sabe que a carta que denuncia a infidelidade da noiva é falsa, mas mesmo assim não muda a opinião sobre a futura esposa. Rompe o noivado. A carta falsa é fake news, mas isso não importa para o machista preconceituoso. Importa é despertar a desconfiança sobre a noiva, ou sobre o político democrata. Despertar a desconfiança é jogo retórico. A imprensa vem reclamando dos eleitores a incapacidade que têm de aquilatar, pelo conhecimento dos fatos, pela busca da verdade, os mandos e desmandos retóricos do presidente americano.
Acesse: Nos seus 40 anos, 'Uma Literatura nos Trópicos', de Silviano Santiago, ganha reedição